Depoimentos 

 

O BONITO DA MINHA INFÂNCIA

Diz-se com razão que não devemos voltar aos lugares onde fomos felizes. É que depois a felicidade não se reencontra, e só os despojos do tempo nos surgem ao olhar. Como se a cada regresso uma tabuleta nos avisasse à entrada: “Atenção, pode magoar-se”. E o aviso nos fizesse ponderar o arrepiar caminho.

Mas mesmo assim. Nasci em 1959, vamos pôr isto entre a segunda metade da década de sessenta do século passado e o 25 de abril. O Bonito foi na minha infância entroncamentense (desculpem tão rebarbativa palavra) uma descoberta natural, que só muito mais tarde se percebe que foi mesmo uma aventura, um reino mágico para gnomos infantes, quase um rito de passagem do quintal e da rua para o vasto mundo. Nesse tempo, as crianças viviam na rua, dentro de casa comiam-se as refeições grandes, faziam-se os deveres e dormia-se. Mas a rua também era só a nossa rua. Só a pouco a pouco nos aventurávamos em espaços de maior largueza e menos nossos.

Quando se tem, não sei bem, oito, dez anos, desviar-se de casa um quilómetro é obra. Ir muito para lá de onde havia casas, arriscando os cães vadios e até cobras no caminho, estão a ver. Mas o Bonito era um sítio onde morava a aventura da água pura a nascer, onde deslizava um suave ribeiro com pequenos peixes esquivos que se escondiam nos fundões,  bordejado por árvores de sombra domingueira, magnificamente altas e para mim exóticas, um sítio onde os melros faziam ninhos, como hoje, tão perto do chão e em tão grande descuido e onde, pelo verão, as cigarras estavam invisíveis mas incansáveis em todas as árvores, e os grilos à porta dos seus buracos, calando-se aos passos próximos. Não me lembro em que altura do ano, talvez em junho, vinham os pirilampos, miríades deles, ao cair dos dias, e depois depressa desapareciam. Mas era com um furor entusiástico que algum de nós um dia anunciava na rua “Já há pirilampos no Bonito!”. E ala, a ver quem consegue apanhar mais. No tempo das chuvas da primavera, rebentavam os espargos, que ainda não eram silvestres, porque não conhecíamos outros. Os que eu trazia para casa fritava-os a minha avó Ana com ovos e o “petisco” desculpava-me bastante do ter andado por lá tanto tempo e até tão tarde com a malta. Mais raras eram as cilercas, em certos anos havia poucas, cravava-se a unha e, se não corassem, eram comestíveis. E julho era o tempo das amoras, sim. Pelos finais de setembro, com as primeiras chuvadas, apanhavam-se agúdias para armar costelas aos pássaros pelo outono todo. Eu punha-as numa caixa de sapatos, furava-a por fora com  palitos onde espetava pedaços de maçã e algodão humedecido. Em dezembro ainda havia agúdias nas costelas, com as asas a brilhar ao sol de inverno, a atrair pássaros esfomeados àquela armação de arame tão cruel. Só no Bonito é que se apanhavam melros, e até gaios, e ir aos pássaros ao Bonito era coisa de grandes. Podia aparecer a venatória e tudo.   

Para os adultos, o Bonito era sobretudo a fonte e as tardes familiares. O meu avô Marques ia lá na pasteleira armada com uma pequena albarda de ferro para dois garrafões de cinco litros, ainda de vidro, pedalava vagarosamente até casa, chegava cansado, se fazia calor. Muitas mulheres iam a pé, de manhãzinha, de bilha à cabeça, equilibrada numa rodilha. Levar água às “senhoras” era mesmo um “biscate” a que se dedicavam umas quantas delas, ou por vezes apenas um paga-obrigações devidas. Alguma gente vinha já de carro, parava por ali perto e enchia aos dez e quinze garrafões. Quase todos os homens trabalhavam na CP, pelo menos os da minha rua, e começava a haver a “semana inglesa”. No Entroncamento, a maioria dos residentes teve fins de semana muito antes da gente de outras terras, mais ligadas ao campo. Se fazia bom tempo, muitas famílias levavam lancheira e jornadeavam pelas sombras. As mulheres lidavam e os homens liam a Bola, dormiam a sesta ressonando e depois jogavam uma cartada ou à malha ao mesmo tempo que ouviam o relato no transístor a pilhas. Havia ainda muitas crianças. Furtivos eram ainda os namoros, ou os inícios deles. Para uma rapariga, ir ao Bonito sozinha com um rapaz tinha que se lhe dissesse. “Dá-me uma gotinha de água / dessa que eu oiço correr”, como na canção.

Pois bem. Um dia apareceu mesmo uma tabuleta: “Água imprópria para consumo”. Quase ao mesmo tempo, veio a revolução, o tempo acelerou muito, tanta coisa mudou para sempre. Os autarcas, como se começou a chamar aos que ganhavam as eleições para a câmara, tinham planos. Uma albufeira para pesca desportiva, um parque com infraestruturas para o lazer dos munícipes, um circuito de manutenção, toda uma nova linguagem. Muitas pessoas começavam então a fazer “jogging” ali à volta, havia passeios solitários de ruminações da vida e da vidinha, namoros muito mais afoitos, momentos zen, leitores pelas sombras. Nas margens da albufeira, dois ou três melancólicos pescadores, como que fixados sempre na mesma fotografia já vista. As famílias continuaram a ir aos fins de semana de bom tempo, mas muito menos depois de os hipermercados abrirem as portas e de quase toda a gente ter carro. Para quem vinha antes da revolução, tudo começou a ser diferente. Nos últimos anos, para cortar de vez em quando com a suave permanência dos dias, tem havido encontros de motares, uma ou outra festa cigana, concursos de pesca.

No momento em que escrevo, o Bonito está vedado às pessoas. Mais planos. Um restaurante. Parece que um parque de campismo. Mais uma “intervenção”, mais palavras novas. A minha infância, essa continuará com as mesmas palavras e, por mais planos que venham, Bonito é para sempre uma delas.

Prof. Arnaldo Marques